31 de jan. de 2012,14:44
SEXAGÉSIMA QUARTA LEVA

Foto: Jimmy Christian
                                                         







CICERONEANDO


Um novo ano desponta e os caminhos trilhados por aqui vislumbram novos horizontes. Enquanto aguardamos a gestação de um novo espaço, agora realidade cada vez mais próxima, a Diversos Afins se alimenta de outras tantas descobertas através das vias da arte e da literatura. Por certo, encontrar expressões que pudessem promover nos leitores uma experiência atraente de saberes e sabores sempre foi e será nossa tônica maior. É estimulante constatar que cada autor promove a dança de seus próprios signos e isso, por si só, já é capaz de nos dizer que o mundo é feito do balanceamento das diferenças. O bom combate em torno da arte é aquele que pretende afastar verdades universais e certas uniformidades de pensamento. Para isso, refletimos. Para isso, agimos. Para isso, respiramos. Perceber nalgum artista ou autor lugares talvez nunca antes explorados fascina sob as mais variadas formas. Ilustrando um pouco este pensamento, a Leva atual destaca os preciosos registros do fotógrafo Jimmy Christian, a retratar de modo singular a poesia de gestos e tons do povo amazonense. Sob a forma de versos, a vida explode na verve poética de Lalo Arias, Geraldo Lavigne, Rui Tinoco, Helenice Rocha e Inês Lourenço. Numa entrevista, a poetisa baiana Lita Passos fala um pouco de sua trajetória e pontua aspectos sobre seu mais recente livro. A cinéfila Larissa Mendes revisita o poeta Allen Ginsberg por intermédio do filme “Howl”. Floriano Martins nos convida à leitura de “Depois do canto do Gurinhatã”, novo rebento da poetisa Viviane de Santana Paulo. O contos de Tere Tavares e Lara Amaral tecem novos dedos de prosa. Veredas alternativas da música abrem alas para a intensidade presente no trabalho do cantor e compositor  Wado. Cada vez mais renovados pela força das palavras e imagens, erguemos 64 jornadas culturais com vontade e afinco. Sejam bem-vindos ao resultado de tudo isso!
 



*Comentários podem ser feitos ao final da Leva, no link EXPRESSARAM AFINIDADES.






JANELA POÉTICA (I)

Rui Tinoco 


eis a complexa maquinaria
do dizer. o primeiro verso
como o gesto inicial,
algo capaz de fulgurar
no branco. o trovão
iluminado. as frases somam-se
marcando o ritmo: a artimanha
que impele o leitor contra o significado
e o surpreende - apesar das reservas
do crítico literário. com isto
aproxima-se o fim: o autor
surge para recolher os louros
se bem que ainda alguém se interrogue
se tudo isto foi sentido ou não. 



(Rui Tinoco nasceu em Vila Real, Portugal, mas desde cedo se mudou para Braga, considerando-se bracarense. Psicólogo Clínico graduado pela FPCE da Universidade do Porto, cidade onde atualmente habita)




 


Foto: Jimmy Christian







INTERIORES

Tere Tavares


                                                                      Resisto a tudo, menos à tentação. 
                                                                                                               (Oscar Wilde)


Entre a qualidade e a natureza da própria construção, houve algum dia um céu para as minúsculas evidências, múltiplos destinos e harmonias entrelaçadas?

Percebe a tristeza gasta dos sapatos. É vago porque é vário, porque não é. Reencontra desconheceres que o presenciam. Tenta expor o que há nas falas da visão. Muito além do branco, em paz no próprio desassossego, abstrato. Não passa de tentativas de preenchimento. Um rumoroso enternecer corrompendo o silêncio atroz e doce, passos requeridos palidamente de uma pequena metrópole da alma.  Tudo claro e iluminado. Tudo muito pacífico. Imenso. Onde as estrelas nunca mentem sua luz nem o pescador retorna sem o bulício solto das redes.

E os passos se redimem no extrato do estranho dono dos sapatos, do medo exausto de temer o gosto do estranho. Não ter seguidores talvez seja o melhor mérito. O intuito da negação que não se detém a falar de limites, de incongruências. Só de si. Dúbias. E que diante do subterfúgio, inaugura o prazer de pisar.  Mas é o nome, apenas o próprio nome a melhor alegoria dos seus pés – E cadê o céu para revelar-lhe a fórmula indolor, o eu preciso de um talvez paulatinamente amadurado na insônia que não cansa?

O fio diluído do menino que voava ultrapassou as farpas. Fugindo sempre que possível de qualquer traço que lhe referisse uma imagem ilusória, improvável. A percepção deve estar diretamente ligada a uma carga elucidativa potencial para instaurar-se no campo da consciência. Temia, acima de tudo, o desconhecimento do objeto que a produzia. O solo não era um fantasma, nem a biologia um aparato tecnológico simplista. Fechou o laptop. Havia sussurros em todas as janelas. Não se deteria a fragmentar os estigmas do silêncio em outro idioma para meia dúzia de pessoas. O painel. O laboratório. A platéia irredutível dos tubos de ensaio. Experiências alegremente concentradas em teorias e teses. As moléculas e as células continuariam a vê-lo. Envelheceu pesquisando como se rejuvenesce. Uma borboleta diáfana e branca pousou em seus cabelos anelados. “Sou um doutor?”



(Tere Tavares é escritora e artista plástica. Autora de três livros publicados "Flor Essência" (2004) e "Meus Outros" (2007) e "Entre as Águas" (2011). Integra a Academia Cascavelense de Letras. E-mail: t.teretavares@gmail.com) 







Foto: Jimmy Christian









JANELA POÉTICA (II)


O RISO E O GRITO


Helenice Rocha



O riso que o meu gesto
esconde não anuncia as
manhãs
riso tímido de quem
galga montes a passo
miúdo
Desconfio do vendaval
das espécies
A redistribuição de
XXrendas? Duvido
Mas amo o latido dos cães
e o grito dos meninos.




(Helenice Maria Reis Rocha é Mestre em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É compositora e estuda desenho. Atualmente cursa Especialização em Educação musical para crianças na UFMG)








APERITIVO DA PALAVRA


Viviane de Santana Paulo: teares de um canto-livre

Por Floriano Martins










Novo livro de Viviane de Santana Paulo: Depois do canto do gurinhatã (Multifoco, 2011). Este é um daqueles livros cuja leitura nos toma de uma maneira que não a conseguimos deixar de lado. Nenhum poema ou mesmo verso pode ficar para o momento seguinte. Vale experimentar. Trata-se de uma condição magnética da linguagem utilizada por Viviane de Santana Paulo. Não à toa a poeta mescla seu canto ao do gurinhatã, a ave que canta muito, sem medo de adentrar o canto de todas as demais. Assim ela o faz, não por tática de imitação, mas antes de assimilação. E o ímã de seu canto esplende exatamente por essa razão, a intensidade com que se identifica com o que há de mais urgente na condição humana. Seus jogos de linguagem – afinal a linguagem não subtrai o lúdico – estimulam os sentidos, são perspicazes na leitura do efêmero, do transitório, do banal, das zonas de insegurança que tornam a humanidade um sinal ainda de transcendência de toda a matéria ordinária que a caracteriza. É bonito ouvi-la com essa convicção de que o homem cabe bem em seu mundo, de que a entranhável magia é resultado de escavações na carne do cotidiano. Contrária à lírica evasiva de seu tempo – quase diria alienada, não fosse o desgaste deste adjetivo – a poesia em Viviane de Santana Paulo traz para o convívio de seu verbo a ferrugem, a acidez, a angústia, na mesma proporção em que a alegria de viver, o milharal da memória, a flor do orgasmo. Faz de suas páginas o lugar de encontro de todas as perspectivas do humano. Não cultua os trocadilhos gratuitos de seus pares, não se exime de conferir realidade a cada imagem debulhada, nem expia culpas com seu discurso. Ao revelar o excesso que há no interior de cada cena, acentuando-lhe os vícios, os quadrantes vazios, cuida também de esvaziar as habitações de toda e qualquer tática de subterfúgios. O mundo, na poesia de Viviane de Santana Paulo, existe para ser habitado, com expansivo sentido de entrega. E o faz com um contagiante êxtase de felicidade, como se recebesse com irrevogável alegria uma tarefa do destino, igual a seu parente alado, o gurinhatã, o pássaro que é todos os pássaros. 




TRÊS POEMAS DE VIVIANE DE SANTANA PAULO



Bonn Hauptbahnhof 1993


o casal conversando a minha frente
meia idade ela com os olhos inchados
a pele frouxa do rosto pálido os cabelos desalinhados
xxxxxxxxxxxxxxxxgeralmente anda com a braguilha
da calça aberta e descabelada trançando as pernas
assim também anda o seu parceiro aqui neste bar
na estação ferroviária onde o vazio é interrompido
pelas mesas vazias e os trens passando não passam de janelas
enfileiradas partindo rapidamente
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxestão sóbrios
agarrados na realidade
no momento desperto e fumam e conversam sobre...
não sei!
aquele que está sozinho ainda não acredita
que quem ele espera não vem desespero lento
e mudo aceita como se não fosse ele quem esperasse
os trens passam não se despedem
xxxxxé bom que tudo se torne óbvio!
um simples hábito natural como um garçom
que se aproxima a xícara vazia partindo alguém entra
busca — o olhar de quem não encontra é luz enfraquecida
e eu apenas me sentei
para esperar as horas me encontrarem





***



“o dilema de um anjo I”


as rugas do mundo aprofundam a dúvida
progredimos com a tecnologia
e seguimos a passos de tartaruga a caminho da paz
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxe da justiça social
há sempre uma guerra em alguma parte do planeta e fingimos
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxnão ser perto de nós
eu precisaria muitíssimo olhar o mar
e não o jornal, flutuar meus olhos em seu azul e movimento
e deixar as roupas no varal e o vento morno soprando
reparar no ruído dos insetos na indolência da tarde
o que tenho a dizer?

a melhor coisa do dia hoje, excluindo uma rápida chuva
que lavou a poeira dos muros, foi ler um poema de
Tanikawa Shuntaro
dedicado a um desenho de Paul Klee que dizia algo como

um anjo que chegou de um segundo mundo ao lado desse
arrastou-se pelos séculos e estava tão magro, fino
como um risco, precisava voar porque suas asas foram
um presente dos homens, precisava voar mesmo como
uma drosófila vive por um dia e ansiava como água
uma ínfima gota de alegria

o que tenho a dizer?
eu que nem asas tenho!





***



a pele da suçuarana

 
me disseram que o homem não vive sem a liberdade
mas até hoje não vi um homem livre
preso no cárcere das fraquezas de ferro fogo e martelo
estreitos os caminhos e largos os equívocos
a ilusão servindo de portas abertas
grilhões soltos grades destruídas
se agarra na carne macia da ilusão
nas penas leves do voo com garras afiadas
da realidade pontiaguda cujos fiapos
e estilhas ferinas nós mesmos criamos
com patas de ferro fogo e martelo
que atingem o espaço feito para se ser livre
e não deixa espaço à fuga à corrida à consciência de si
me disseram que o homem não pode ser se não for livre
mas jamais conheci um homem livre livre
a ponto de reconhecer do que e o quanto é prisioneiro
 



(Floriano Martins (Brasil, 1957) é poeta, editor e ensaísta. Dirige a Agulha Revista de Cultura. Entre os livros mais recentes, se encontram “Autobiografia de um truque” (2010) e “Susana Wald - La vastedad simbólica” (2012). Contato: floriano.agulha@gmail.com)






Foto: Jimmy Christian






JANELA POÉTICA (III)
 

OUTONO VERDADEIRO

Lalo Arias


as folhas
estão espalhadas
nem mesmo o vento
será capaz de juntá-las

as janelas estão fechadas
não há como entrar na casa

olho sobre meu ombro
e percebo algo que se arrasta
deve ser a lembrança
de uma tarde fria
uma sala aquecida
xícaras de banchá
e o trecho de um livro
que foi lido em voz alta


 
(Lalo Arias é autor do livro Cidade Desaparecida (Editora Scortecci, 2010, poesia). Tem outros 4 livros de poesia publicados na internet que podem ser lidos através dos links à disposição em seu blog)

 






Foto: Jimmy Christian








PEQUENA SABATINA AO ARTISTA

Por Fabrício Brandão



Como explicar o manto que envolve o poeta? Eis uma pretensão das mais inatingíveis. Mesmo amalgamado por doses imprecisas de racionalidade e lirismo, um artífice dos versos não se furta ao mistério e se defronta constantemente com um cenário de dúvidas e quase nenhuma certeza sobre todas as coisas que o assomam. Estaria aí um horizonte invisível a se contemplar e atravessar, talvez missão maior de todas. O impalpável e o intangível fazem par constante junto a uma miríade de possibilidades criativas, quiçá um reconhecimento de que na ordem universal das coisas o homem é mais coadjuvante do que um interventor de fato.

Quando nos é dada a chance de cruzar os caminhos poéticos de certos autores, resta viva a noção de uma incompletude humana que nos move adiante. Tal sensação está bem presente no legado dos versos de gente como Lita Passos, alguém que propõe de modo evidente o experimentar de sensações feitas de encantamento. Engana-se certamente quem imagina ser tal atributo uma mera formulação estética e vaga. Nesse aspecto, a poetisa de Cruz das Almas, região do Recôncavo Baiano, sabe domar e harmonizar as imperfeições da existência, tendo por norte a condição de não perder de vista uma noção de beleza que agrega os seres e suas rotinas tão marcadas pela contradição. A autora de Flores de Fogo (poesias - 1994),  Mão Cheia (poesia e contos - 2005), dentre outros, agora assinala,  em Rosário de Lembranças (poemas – Ed. Vento Leste – 2011), um lugar especial onde a memória afetiva desponta majestosa. O livro exalta raízes com um olhar apurado sobre as marcas do tempo e o aprendizado que elas encerram, tudo muito bem amarrado a uma perspectiva íntima do viés feminino. Hoje, estamos diante de uma escritora que sabe do resultado de suas escolhas, sobretudo aquelas que consolidaram sua vivência pelas letras. A entrevista que agora segue demonstra o quanto uma trajetória fundada na arte da palavra é capaz de erigir não apenas uma obra, mas também um entendimento sublime sobre o ser.





Lita Passos
Foto: João Franco




DA - "Rosário de Lembranças" promove um especial percurso pelas vias da memória afetiva, característica marcante na sua trajetória literária. É possível considerar que a motivação maior da sua condição de poeta vem do olhar presente nesse livro?

LITA PASSOS - A condição de poeta, a memória afetiva, a vida presente, as vivências, as experiências, minhas circunstâncias, a beleza, todos estes elementos são motivadores para a produção literária atual. Neste Rosário de Lembranças, sem dúvida, os poemas voltados para a infância percorrem corredores infinitos de minhas lembranças afetivas.


DA - No livro, há o que podemos denominar de tempo da delicadeza a permear os versos. Como é que você percebe tal característica?

LITA PASSOS - Fico muito contente em saber que Rosário traz esta nuance da delicadeza. Sou encantada com as pessoas delicadas, elegantes no trato com o outro, e se você percebe que os versos estão permeados de delicadeza, o olhar é seu, é o seu tempo de delicadeza, que belo!


DA - Diante dos imperativos da pós-modernidade, o que você considera ser o maior desafio em matéria de criação poética?

LITA PASSOS - Será que tudo está dito!? Sinto que o nosso maior desafio é buscar dizer o que já foi dito de um outro jeito, nesses tempos internetianos pós-modernos,  re-unir nesse mundo digital, num só movimento: palavra, cor e som. Resta arriscar, e perceber, no infinito, a beleza.


DA - Apesar do advento da internet ter causado uma peculiar revolução em termos de criação literária, nem tudo que reluz é ouro diante de nossos olhos. Que tipo de conduta é adequada para o enfrentamento das distorções presentes no caminho eletrônico?

LITA PASSOS - Filtrar sempre tudo o que se apresenta aos nossos olhos é um cuidado. Nas minhas leituras aprendi, desde antes, a peneirar o que chega aos meus ouvidos e olhos, e na internet podemos descartar muito rápido o que não serve. Isso tem uma relação direta com o grau de percepção de cada um, claro.


DA - Em termos literários, o que você não endossa na pós-modernidade?

LITA PASSOS - Endossar o quê neste sistema "cultural" capitalista?  Poesia é também objeto de consumo? A pergunta é grave, mas a resposta é mais grave. Prefiro endossar o que acredito: a vida densa, a beleza das ideias, tudo que vem substancialmente do olhar pelo sentir.


DA - Num tempo no qual o fazer literário é algo por vezes frenético, a poesia contemporânea tem sido capaz de se sobrepor a meros ditames mercadológico-editoriais?

LITA PASSOS - Mesmo sendo a poesia uma arte sempre à margem, mas sempre presente na vida, a boa poesia contemporânea tem seu público seleto, mas o ditame mercadológico-editorial existe, e é cruel, sabemos disso.  Precisamos, sim, criar uma cultura de leitores nas escolas públicas, de críticos, para que, através de políticas públicas adequadas, esse mercado editorial brasileiro se fortaleça e cresça, garantindo espaço aos cânones literários bem como aos novos poetas.




Foto: João Franco



DA - Muito se alega que o Brasil é um país de poucos leitores. Poderíamos também enxergar nisso uma ideia de subestimação?

LITA PASSOS - Como? Essa é uma cruel realidade. Qual é a nossa taxa atual de analfabetismo? Então não se trata de subestimação. Essa fragilidade tem raiz histórica, e todos nós somos responsáveis nessa tarefa de auxiliar o leitor inicial. A família e a escola são  fundamentais nesse processo, mesmo dentro das dificuldades conhecidas. Mas acredito que temos chance cada vez maior de ler melhor, com mais discernimento e proficiência, é só querer prestar atenção às referências antigas e consagradas, e acolher o novo de qualidade, a exemplo desta interessante revista Diversos Afins.


DA - De que modo você tem percebido o atual panorama literário baiano? Crê num diálogo entre tradição e modernidade?

LITA PASSOS - Vejo com bons olhos. Aliás, procuro olhar este cenário do alto, para de fato perceber as nuances deste panorama literário baiano, e viajar na história. Acho que tudo é relativo e circunstancial. Faço aqui uma reflexão de minha presença nesse espaço literário, e desde que escrevi meus primeiros poemas tenho tido a boa oportunidade de publicar em revistas, jornais baianos, e participar de projetos literários. Acredito muito no diálogo, especialmente entre a tradição e a modernidade, e sei que não é muito fácil. A Academia de Letras da Bahia vem lentamente abrindo espaço neste sentido. Entre os anos 2010 e 2011, na condição de público, pude presenciar alguns projetos na ALB com este objetivo, o diálogo entre a tradição e a modernidade.


DA - O saudoso poeta Ildásio Tavares, numa entrevista concedida aqui, sustentava que o pior inimigo do escritor é o espelho. Você também pensa desta forma?

LITA PASSOS - Quem é doido de contestar a afirmativa de um Mestre do grau de Ildásio? O espelho é o meu maior crítico, não só do texto, mas em tudo na vida. Os diálogos internos são intensos, e a cada resposta, uma nova pergunta!? E agora?


DA - Na sua visão de educadora, qual a dimensão do hiato entre o ensino e a prática literária em nosso país? 

LITA PASSOS - A dimensão é exatamente do tamanho da prática que vem sendo adotada desde o inicio da educação, ou seja, a tradicional.  Mas é possível visualizar pontualmente alguns diferenciais, a exemplo do Colégio Público Estadual Luciano Passos, em Cruz das Almas, quando fiz, em outubro de 2011, a abertura da Semana Literária, na qual se vê uma equipe de professores e alunos motivados a vivenciar a literatura, que é de fato o melhor jeito de desenvolver o gosto pela leitura. Quando nosso país definir políticas públicas com claras inovações nas práticas literárias, desde professores a alunos vivenciando a experiência, é que algo novo poderá surgir. 


DA - O termo formação de leitores lhe soa algo atraente? Vislumbra perspectivas adequadas de ação neste sentido?

LITA PASSOS - Acho que o leitor deve ser motivado. A expressão "formar leitor" até parece que é mais uma disciplina e/ou curso acadêmico, mas o que interessa mesmo é a juventude motivada, vivenciando a experiência da arte literária, e, para isso, precisamos de equipes de educadores e pais motivados, cada um sendo responsável pelas suas ações nesta direção, independente das práticas políticas adotadas hoje no país, autodesenvolvimento neste sentido.


DA - Sentir-se definitivamente pronto talvez seja uma sensação um tanto utópica para um escritor. Como é que isso funciona com você?

LITA PASSOS - A única certeza que tenho até o presente é que sou uma eterna aprendiz, e venho aprendendo a aprender a viver, estudar, ler, e sobretudo me relacionar com a natureza como um todo. Na literatura, acho que existem grandes conhecedores, com excelente domínio técnico, mas ninguém está pronto, tudo é dinâmico e mutável, especialmente na linguagem.






Foto: Jimmy Christian









JANELA POÉTICA (IV)
 

AMIÚDE OLHAR


Lita Passos



Porque meu olhar inquiridor
Investiga a essência da vida
Assusta bichos de cabresto
Paridos de solidão e dor


Porque meu olhar essencial
É síntese de verdade e beleza
Endoidece em espiral
O galope de minha presa


Porque meu olhar apazigua
Bichos, amantes e sedas
Desfaz promessas e labirintos
Em pastagem azul se equilibra

 




DROPS DA SÉTIMA ARTE

Por Larissa Mendes


Howl. EUA. 2010.




 

“Eu vi os expoentes da minha geração
Destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus,
Arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada
Em busca de uma dose violenta de qualquer coisa” (...)
(Allen Ginsberg, Howl - para Carl Solomon)

A denominada Geração Beat – grupo literário composto por jovens americanos que pregavam a tríade ‘sexo, drogas e jazz’ no final dos anos 50 – desembocou num dos movimentos de contracultura mais significativos de todos os tempos, sendo inclusive embrião das culturas hippie, punk e da cena underground como um todo. Alavancada pelos escritores Allen Ginsberg, Jack Kerouac e William S. Burroughs e suas respectivas obras Howl and Other Poems (1956), On The Road (1957) e Naked Lunch (1959), a nova boemia hedonista celebrava a criatividade não-formal e a busca por experiências libertárias e transcendentais. No entanto, nas palavras de um modesto Ginsberg, o conceito de tal “geração” nunca existiu e os beats nada mais eram que “um monte de caras tentando ser publicados”

Como o próprio título sugere, o pseudo-documentário Howl (ou Uivo, em bom português) baseia-se no emblemático poema de Allen Ginsberg (interpretado por um James Franco inspiradíssimo), artista de 29 anos e até então desconhecido. Dedicada ao escritor Carl Solomon, trata-se de uma longa poesia confessional e vigorosamente rítmica de “sua visão de mundo”, incluindo suas paixões e tormentos (homos)sexuais por alguns autores, sua simpatia aos ideais anarquistas e experiências com os mais diversos narcóticos,  bem como retrata a amargura de toda uma leva de artistas oprimidos pela sociedade moralista da época. A publicação de Howl dividiu opiniões quanto ao seu valor literário e teor erótico e o poeta Lawrence Ferlinghetti – sócio da editora City Lights Books, que distribuiu as mais de 500 cópias da coletânea que continha o poema – foi levado inclusive a júri, acusado de ser conivente à obscenidade da obra. 

Tal qual o poema original, o longa-metragem também foi editado em quatro partes não-lineares: uma de caráter documental e quase terapêutica, na qual Ginsberg concede uma entrevista despindo vida e obra a um jornalista oculto em Nova York, em 1957; o julgamento do caso, no mesmo ano, em San Francisco; sequências em preto e branco da primeira leitura oficial do poema na Six Gallery, em 1955, e de demais passagens de sua vida pré-escândalo, e, finalmente, uma animação em graphic novel que ilustra boa parte da declamação de Howl. Aliás, o artefato da animação utilizado pelos diretores Jeffrey Friedman e Rob Epstein para a narrativa do poema não soar maçante ao grande público é o maior trunfo do filme: enquanto James Franco declama Howl com toda sua veemência, as belíssimas ilustrações surrealistas de Eric Drooker (que era amigo pessoal do poeta) são de uma densidade e lirismo à parte.

Em linhas gerais, Howl é de um combinado apuro literário e estético visto raramente no cinema contemporâneo. “Você não deve traduzir poesia em prosa, por isso é poesia”, é a advertência de uma testemunha ao advogado de acusação do caso, pois a dupla de documentaristas parece ter ignorado tal recomendação e dissecou com competência e ousadia a subjetividade do poema, sobretudo pela utilização de diferentes linhas narrativas. Howl é de fato um uivo, um grito contra a censura e o preconceito, um urro primitivo e visceral que nos recorda – mais de meio século depois – a importância vital da liberdade de expressão em todas suas formas e conteúdos, ainda que nos dias de hoje a pauta não seja essencialmente poética, e sim uma canção sertaneja que ecoa pelo mundo ou uma piada de mau gosto.








(Larissa Mendes é turismóloga, cinéfila e endossa o coro de Oscar Wilde, que definir é limitar)










Foto: Jimmy Christian








JANELA POÉTICA (V)
 
Geraldo Lavigne
 


 

andar pelas campinas e pelos lajedos
a serra, a superfície rechã
à beira dos muros, passos curtos
como os coiotes, como as hienas abandonadas
os olhos espertos, os olhos sagazes
passos céleres, garras gastas

um meio-fio, assento impreciso
se o uivo já ecoou
em todos os quartos
e as alcovas permaneceram apagadas
sob a luz fria ou a luz quente
– os dois tempos do mundo –

a solidão subsiste
na ânsia da individualidade




(Geraldo Lavigne de Lemos é natural de Itabuna, Bahia. Radicado em Ilhéus, é formado em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz. Poeta, apresenta seus trabalhos em jornais locais. Seu primeiro livro, recém-lançado, chama-se À Espera do Verão, Ilhéus-BA:. Mondrongo, 2011)






OUVIDOS ABERTOS

Por Fabrício Brandão


WADO – SAMBA 808



Necessário é o gosto pela ousadia. Quebrar a membrana quase invisível das nossas auras turvas de mesmice é tarefa de alguns poucos. Por certo, o sujeito que se atira a tal propósito pode se encaixar num tudo ou nada. E é preciso coragem para apostar num rumo que se pode fazer de forma alternativa, mordiscando bem de perto os lábios da dita marginalidade. Podem gritar, espernear, maldizer, mas o fato é que o cidadão Wado, catarinense radicado nas Alagoas, sabe muito dessa coisa toda de estar no mundo, mas fora dele.

Samba 808 é uma espécie de manual de viagem para dentro de alguns relances de nossa contemporaneidade transviada. Se a definição parece nebulosa, arrisque-se a percorrer as faixas desse que já é o sexto álbum do cantor e compositor Wado e ateste o que está sendo dito. Dono de uma verve lúcida e precisa, o artista tem forma e conteúdo, aspectos que são facilmente identificados nas escutas de cada uma das músicas do disco. Letras aguçadas e devidamente encaixadas compõem um rico painel de experimentações sonoras que mais parecem uma amálgama daquilo que hoje em dia bem somos: seres ensimesmados, hesitantes e crentes de uma perfeição que em tempo algum chegará a ser nossa parceira de morada.

Além de arranjos e construções melódicas de qualidade, um bom disco certamente necessita de um apelo que vem do verbo. E isso Samba 608 tem em abundância. Ter algo verdadeiramente interessante a dizer é a grande marca do novo trabalho de Wado. Basta prestarmos atenção a canções como Surdos de Escolas de Samba, Si Próprio, Com a Ponta dos Dedos e Recompensa.

“O hospício não vai me dobrar/escondo embaixo da língua”, destila a irreverente Não Para, música que sabe bem de nossos tresloucados dias e mostra que Wado mexe com precisão cirúrgica na miopia que nos assola. Não bastasse todo o dito, o álbum ainda conta com as presenças marcantes de gente como Zeca Baleiro, Chico César, Marcelo Camelo, Curumim, André Abujamra, Mallu Magalhães, Fernando Anitelli, Fábio Góes, Alvinho Lancellotti e Momo, todos muito bem afinados em torno dessa evocação ao bom gosto musical.

Samba 808 é fruto de uma opção pela independência musical. Longe das amarras de gravadoras e selos badalados, Wado se viu pronto para cruzar fronteiras convencionais e realizar as coisas a seu modo. O resultado está impresso em cada canto de um disco maduro, surpreendente e, o que é melhor, sem nostalgia alguma do velho mundo da falta de imaginação.



* Para abrir os ouvidos, clique aqui








Foto: Jimmy Christian


 



JANELA POÉTICA (VI)


SALA PROVISÓRIA

Inês Lourenço


Nunca se sabe
quando estamos num lugar
pela última vez. Numa casa
que vai ser demolida, numa sala
provisória que vai encerrar, num velho
café que mudará de ramo, como
página virada jamais reaberta, como
canção demasiado gasta, como
abraço tornado irrepetível, numa
porta a que não voltaremos.



(A poeta portuguesa Inês Lourenço nasceu no Porto. É licenciada em Línguas e Literaturas Modernas (Universidade do Porto). Entre os livros de sua autoria, estão: A Enganosa Respiração da Manhã (Asa editores, Porto, 2002) e Logros Consentidos (&etc, Lisboa, 2005).






Foto: Jimmy Christian







MÓRBIDO CARROSSEL

Lara Amaral


Já possuía mais frieza para olhar pessoas mortas. Ossos do ofício. Aquela figura pendurada no ventilador do quarto com uma corda no pescoço já não era uma cena tão sinistra como seria quando começou no emprego há 11 anos. Até coisas morbidamente hilárias passavam por sua cabeça ao imaginar a cena. Poderia ter dado errado, por exemplo, o homem, na hora de subir na mesa, poderia ter escorregado e esfolado o joelho, torcido o tornozelo, caído numa risada desesperada e até desistido do feito; ou na hora de pular da mesa, o ventilador poderia ter se desprendido do teto e o homenzinho estaria ali chorando agachado no chão pensando o tanto que era imprestável até para se suicidar. Mas não, no caso, havia dado certo, se puder se referir a tal fato dessa forma... Enquanto o corpo balançava quase imperceptivelmente, ele imaginou se o ventilador pudesse ser ligado e, ao invés de parecer uma carne dependurada num açougue, o homem ali pareceria uma das hastes daqueles carrosséis de filmes antigos, que giram como se soltos no ar... como seria estar num carrossel daqueles? Bem, com certeza não seria a mesma sensação que lhe passava aquela cena nada pictórica que estava a sua frente. Ao se aproximar mais do corpo, ele percebe brilhar ali no chão, com o seu ar clichê e magistral: o bilhete. Os dizeres borrados e a caligrafia tremida não deixavam dúvidas de que aquele foi o último legado do homem do ventilador. Leu só por desencargo de consciência, saberia mais ou menos o que estaria escrito: coisas que ficaram por fazer, por decidir, por sentir... coisas árduas demais de se verbalizar, e que só surtiam efeito por estarem impressas ali... coisas primordiais que foram escolhidas por último. Mas o fim que chegava por uma escolha deveria ser amarrado de alguma forma, o fecho precisava de toda a sua dramaticidade, e o bilhete era a chave, as reticências, o ponto final; e o homem ali que o lia sem prestar muita atenção pensava mais em como seria seu próprio encerrar de palavras não ditas.



(Larissa Amaral Teixeira usa o pseudônimo de Lara Amaral como assinatura poética. Nasceu em Brasília em 1986. Formada em Jornalismo, escreve poesia desde os 13 anos e arrisca alguns contos de vez em quando) 






Foto: Jimmy Christian




* Na profusão dos dias, um povo e seus costumes ganham ânimo novo. Trata-se da gente amazônica, caracterizada de forma sensível e poética pelas lentes do fotógrafo Jimmy Christian Pessoa Maciel.  Original de Manaus, Jimmy redescobre sentidos e gestos ante a rotina que se apresenta aos seus olhos. Mais do que percorrer lugares físicos, o artista consegue o trunfo de penetrar na essência das coisas retratadas sem tirar-lhes o que nelas há de melhor: a singularidade. Quer sejam pessoas, objetos ou localidades, há no trabalho do artista uma noção muito precisa de que a porção humana confere lugares especiais ao estar no mundo.

Com várias participações em concursos fotográficos na bagagem, Jimmy também adentra a seara do fotojornalismo, tendo sido, inclusive, finalista do Prêmio Esso com a série de reportagens Destruição e Morte no Sul do Amazonas.  A perspectiva antropológica é uma das marcas registradas de seu trabalho. Recentemente, venceu o 8º Salão de Fotografia de Araras, São Paulo, com a foto Sem Cabeça
 
publicado por Fabrício Brandão
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